Manuel Bandeira
Manuel Bandeira é um poeta fundamental, que retrata a melancolia como poucos. Veja abaixo a seleção de alguns de seus melhores poemas:
A Estrada
Esta estrada onde moro, entre duas voltas do caminho,
Interessa mais que uma avenida urbana.
Nas cidades todas as pessoas se parecem.
Todo o mundo é igual. Todo o mundo é toda a gente.
Aqui, não: sente-se bem que cada um traz a sua alma.
Cada criatura é única.
Até os cães.
Estes cães da roça parecem homens de negócios:
Andam sempre preocupados.
E quanta gente vem e vai!
E tudo tem aquele caráter impressivo que faz meditar:
Enterro a pé ou a carrocinha de leite puxada por um bodezinho manhoso.
Nem falta o murmúrio da água, para sugerir, pela voz dos símbolos,
Que a vida passa! Que a vida passa!
E a mocidade vai acabar.
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Gesso
Esta minha estatuazinha de gesso, quando nova
– O gesso muito branco, as minhas linhas muito puras –
Mal sugeria imagem da vida
(Embora a figura chorasse).
Há muitos anos tenho-a comigo.
O tempo envelheceu-a, carcomeu-a, manchou-a de pátina amarelo-suja.
Os meus olhos, de tanto a olharem,
Impregnaram-na de minha humanidade irônica de tísico.
Um dia mão estúpida
Inadvertidamente a derrubou e partiu.
Então ajoalhei com raiva, recolhi aqueles tristes fragmentos, recompus a figurinha que chorava.
E o tempo sobre as feridas escureceu ainda mais o sujo mordente da pátina…
Hoje este gessozinho comercial
É tocante e vive, e me fez agora refletir
Que só é verdadeiramente vivo o que já sofreu.
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Noite Morta
Noite morta.
Junto ao poste de iluminação
Os sapos engolem mosquitos.
Ninguém passa na estrada.
Nem um bêbado.
No entanto há seguramente por ela uma procissão de sombras.
Sombras de todos os que passaram.
Os que ainda vivem e os que já morreram.
O córrego chora.
A voz da noite…
(Não desta noite, mas de outra maior.)
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Andorinha
Andorinha lá fora está dizendo:
– “Passei o dia à toa, à toa!”
Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste!
Passei a vida à toa, à toa…
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Irene no Céu
Irene preta
Irene boa
Irene sempre de bom humor.
Imagino Irene entrando no céu:
– Licença, meu branco!
E São Pedro bonachão:
– Entra, Irene. Você não precisa pedir licença.
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Minha Grande Ternura
Minha grande ternura
Pelos passarinhos mortos;
Pelas pequeninas aranhas.
Minha grande ternura
Pelas mulheres que foram meninas bonitas
E ficaram mulheres feias;
Pelas mulheres que foram desejáveis
E deixaram de o ser.
Pelas mulheres que me amaram
E que eu não pude amar.
Minha grande ternura
Pelos poemas que
Não consegui realizar.
Minha grande ternura
Pelas amadas que
Envelheceram sem maldade.
Minha grande ternura
Pelas gotas de orvalho que
São o único enfeite de um túmulo.
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A Morte Absoluta
Morrer.
Morrer de corpo e de alma.
Completamente.
Morrer sem deixar o triste despojo da carne,
A exangue máscara de cera,
Cercada de flores,
Que apodrecerão – felizes! – num dia,
Banhada de lágrimas
Nascidas menos da saudade do que do espanto da morte.
Morrer sem deixar porventura uma alma errante…
A caminho do céu?
Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?
Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,
A lembrança de uma sombra
Em nenhum coração, em nenhum pensamento,
Em nenhuma epiderme.
Morrer tão completamente
Que um dia ao lerem o teu nome num papel
Perguntem: “Quem foi?…”
Morrer mais completamente ainda,
– Sem deixar sequer esse nome.
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Pensão Familiar
Jardim da pensãozinha burguesa.
Gatos espapaçados ao sol.
A tiririca sitia os canteiros chatos.
O sol acaba de crestar as boninas que murcharam.
Os girassóis
amarelo!
resistem.
E as dálias, rechonchudas, plebeias, dominicais.
Um gatinho faz pipi.
Com gestos de garçom de restaurant-Palace
Encobre cuidadosamente a mijadinha.
Sai vibrando com elegância a patinha direita:
– É a única criatura fina na pensãozinha burguesa.
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Poema do Beco
Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte?
– O que eu vejo é o beco.
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Porquinho-da-Índia
Quando eu tinha seis anos
Ganhei um porquinho-da-índia.
Que dor de coração me dava
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
Levava ele prá sala
Pra os lugares mais bonitos mais limpinhos
Ele não gostava:
Queria era estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas…
– O meu porquinho-da-índia foi minha primeira namorada.
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Profundamente
Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Vozes cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.
No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam, errantes
Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?
– Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente.
*
Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci.
Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?
– Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.
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Teresa
A primeira vez que vi Teresa
Achei que ela tinha pernas estúpidas
Achei também que a cara parecia uma perna
Quando vi Teresa de novo
Achei que os olhos eram muito mais velhos que o resto do corpo
(Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do corpo nascesse)
Da terceira vez não vi mais nada
Os céus se misturaram com a terra
E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas.
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Momento num Café
Quando o enterro passou
Os homens que se achavam no café
Tiraram o chapéu maquinalmente
Saudavam o morto distraídos
Estavam todos voltados para a vida
Absortos na vida
Confiantes na vida.
Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado
Olhando o esquife longamente
Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade
Que a vida é traição
E saudava a matéria que passava
Liberta para sempre da alma extinta.
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O Último Poema
Assim eu quereria o meu último poema
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação
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Consoada
Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
– Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.
Coletânea bacana! Tenho uma pequena coleção de primeiras edições de Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade que venho postando, de forma preguiçosa, em um blog. Convido a todos os curiosos e aficionados. http://spotguidembecda.blogspot.com.br